Você sempre pode vê-la
Você pode empenhar seu relógio ou sua jóia
Eu tratei da minha perna de pau
Ela nunca deixará você ébrio ou árido
Bem, você diz que isso é o evangelho
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Minha cabeça gira sem parar
Eu tenho meu coração dentro dos sapatos [1]
Eu sentei e ateei fogo no rio Tamisa [2]
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Oh mas em qualquer lugar, qualquer lugar aonde eu deite minha cabeça
Eu vou chamar de casa.
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Por que aprendi, eu aprendi a ficar sozinho. E eu digo:
Em qualquer lugar, qualquer lugar, qualquer lugar aonde eu repouse minha cabeça...
Eu vou, enfim, estar em casa.
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A voz: caótica, rouca, com variações indescritíveis de volume e tom, é a interpretação perfeita para o bêbado existencial que descobre sua autenticidade na relação à distancia com a Casa. É um fim realmente emocionante para o album. Tive que escutá-lo na íntegra mais uma vez para poder ouvir a música.
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O Rain Dog bebeu demais e "quase" perdeu a consciência. Ele sabe que precisa ficar sóbrio. A Casa fictícia trazida pelo álcool está começando a evaporar. Ele precisa descer do sonho.
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Ler o 4.
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O mundo está de cabeça pra baixo, está invertido, insano, perdeu seu sentido, é claro, só assim para haver ouro no bolso de um Rain Dog. Mas não é só isso. Não há ouro de verdade nos bolsos dele, mas é como se fosse. Se houvesse ouro no bolso de alguém, possivelmente ele estaria feliz. Ouro não há, mas há essa felicidade. E para isso, para este sentimento, não foi necessário ouro, nem sol, nem um vento quente e amenizador.
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O Rain Dog aprendeu que a Casa é uma instituição individual. Ele não precisa de ninguém para estar em casa. Mas ele não está na Casa. O refrão diz que em qualquer lugar aonde ele repousar, ele vai estar em casa. Quer dizer, fora de casa, como sempre, mas em um estado de paz. Em qualquer lugar ele está em casa, quer dizer, ele não tem uma casa, a casa dele é tudo o que ele deita, a casa é ele mesmo. O sentido metafísico disso é um só: a casa transcende todos os entes do mundo. Não depende de espaço e tempo (no sentido da Física) para dormir em casa, na Casa, para se sentir em Casa,quer dizer, ter a estabilidade deseja do eu e a supressão do desespero de não ter casa. Não é um sentimento de total completude. "Rain Dogs" não foi o último álbum de Waits. Mas sabe-se, aqui, ao menos, algo que não se sabia antes. Foi aprendido algo, que é a condição individual que a Casa exige. O Rain Dog que vive enchendo a cara com as pessoas que ele conhece pelas ruas descobre na solidão do repouso (deitar a cabeça) a oportunidade de se comunicar com esse espaço talvez sagrado, talvez transcendental, da Casa. Ele se comunica com a Casa, assume sua condição, torna sua expressão mais autêntica, mais singular, a análise existencial subjetiva e volta a encher a cara e se divertir com os outros Rain Dogs. Mas ele sabe que não precisa disso para ser ele mesmo. Ele pode "morrer" para o mundo, para o "outro" e assim fazer as contas e ver o que sobrou disso. O que sobra é o Ser.
Eu me surpreendi quando soube que ela havia feito um album só com músicas do Tom Waits (excetuando uma, que se não me engano é dela). O álbum dela tem um conceito bem diferente do de "Rain Dogs". "Anywhere..." é a única música do RainDogs presente.
A Abertura com "Fawn", uma música instrumental de "Alice", de 2002, foi pra mim a melhor música do disco. Tudo muito alto, muitos instrumentos, tão alto e ao mesmo tempo que tudo se perde. No meio da faixa, tudo parece desconexo. Um efeito impressionante.
Alguns contrastes: A capa de Johansson mostra a moça deitada, muita calma, em uma floresta, algo bem tranquilo. Talvez até algo como a morte... "Who are you" trata do suicídio e "I don't wanna grow up" só pelo título já revela seu carater fatalista. Enfim... A capa do disco de Tom Waits mostra um outro repouso, não tranquilo, mas caótico, bêbado, deficiente. O choro, o riso, a loucura... Bem diferente da serenidade de Johansson. "Anywhere i lay my head" é uma música sobre uma grande mudança, um aprendizado, algo que radicalmente coloca o indivíduo em correspondencia consigo mesmo. Johansson fez disso seu mote, mas de uma maneira diferente. No disco dela, a serenidade é próxima a calmaria da morte. Realmente,mas transcendental e definitiva que a conclusão de "Rain Dogs". Mas notemos que a maioria das canções do disco dela são de albuns recentes de Tom Waits, após Rain Dogs. O carater é muito mais transcendental, no sentido da fatídica "Come on up to the House", que em "Rain Dogs".
Na canção, Waits canta com loucura, extase, paixão. Johansson, uma cantora sem muita habilidade, procura fazer exatamente aquilo que Waits procura não fazer na sua gravação: somente cantar com regularidade, no tom. Sua voz é meio morna, sem nada de muito elevado, e isso a torna um experimento interessante.
Isso me leva a outro ponto. No filme "Vicky Cristina Barcelona" Johansson interpreta uma moça que sempre está tentando fazer algo de carater artístico, sem nunca obter algo de muita qualidade. Ela não tem "talento" para nada. Seu mote é : "Eu não sei o que quero mas sei o que não quero". Acho que Scarlett Johansson é essa mulher. Woddy Allen talvez seja o único que a entendeu. O papel dela em "Match Point" também é o de uma mulher que está "no meio", ela não está resolvida, ela não sabe muito bem onde está e o que esperam dela. Acho que a serenidade do seu album de estreia é isso: tal qual o Rain Dog, Johansson está no entre, em um limite. Holywood não é sua Casa. Ela superou seu "mundo", se pos a caminho de uma outra resolução, um outro destino, que se dá pela questão coloca-da em "Anywhere I Lay my Head".
- Entrevista e confete na cabeça, cantando "Tango till the're sore"
http://www.youtube.com/watch?v=fKSIDg_cn8I
- Show
http://www.youtube.com/watch?v=qVaEPx_VyXs&feature=related
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Cachorro da Chuva. Para ser bem direto, o Rain Dog de Waits, que vou manter a maior parte do tempo no termo original do ingles, é o oposto ao "Palluka" de que Waits fala em algumas músicas. No último post deixei clara a posição anti-niilista de Waits, mas tenho que admitir que não há pior termo. Eu fui bem Nietzschiano e não queria ter sido, e agora por me ressentir com isso caminho no caminho certo. Lembrar: no primeiro post, "Come on up to the house" eu fui, nos comentários, respondendo a um discreto e amável anônimo, contrário a tal afirmação aristocrática (trágica) da vida. Inclusive alimentei a boa idéia do ressentimento. E é isso que quero retomar.
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Rain Dog x Palluka. Esqueçam o niilista. O Rain Dog tem seus ressentimentos e os mantém. Ele é fraco e se esconde na bebida, nos cigarros, no que tiver. A dor é muito grande para um homem contê-la sozinho, e mais ainda para que possa afirmá-la depois que ela se for. Não existem superhomens. Existem Pallukas e Cachorros da chuva entre aqueles que não estão na Casa, ou melhor, entre aqueles que estão no Limiete, na beira, na marginalidade. Ambos são doentes da vida. Talvez doentes de tanta vida, eles são boêmios e vagabundos, são vadios, cães sem muito para gastar nas altas apostas que fazem. Os Cachorros da Chuva tem confete na cabeça. Eles se divertem juntos e honram as pessoas com quem estão. Eles se juntam nos grandes temporais e bebem e enlouquecem juntos. Por que? Por que assim podem chegar mais perto da Casa, de uma familiaridade com as coisas e, principalmente, uma familiaridade com o ente que corresponde ao seu ser, o outro. O Palluka se isola em sua dor, e morre sozinho. A força, em Tom Waits, que mede fracos e fortes, é a distancia da Casa. É uma casa não-física, uma casa metafísica. A familiaridade é a própria Casa, a felicidade e o lidar sem angústia são caracteres desta Casa como modo de ser. A força, assim, fez de uns fracos, os Pallukas, desorientados da Casa por se isolarem longe de qualquer comum-unidade, e uns fortes, os Rain Dogs.
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No post passado eu disse: os que estão fora da casa ou estão sóbrios ou bêbados. os Rain Dogs se mantém entre esses dois estados, seja apaziguando temporariamente a dor para conseguir perpetuar a existencia e assim persistir a busca pela Casa (bêbados) ou buscando efetivamente a Casa e sofrendo enquanto isso (sóbrio). Os Pallukas ou estao muito bêbados ou estão sóbrios, eles não transitam direito entre um lado ou outro. Assim, aquele mamado que fica maluco e fala sozinho 24 horas por dia é um maldito Palluka. De mesmo modo, o mendigo cristão que cisma em não beber e vive se lamuriando, carrancudo e desdenhoso, este é um Palluka do mesmo modo.
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Rain Dogs e Pallukas não são raças ou espécies: são modos de ser, as coisas aqui são sempre modos de ser. Sendo assim, estar levando bem a sua condição é ser um Rain Dog. Estar levando mal é ser um Palluka. Não há maniqueísmo,desta forma.
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Todo mundo quer a Casa, a sua casa. O Palluka está longe de consegui-la, longe exatamente por que ele quer a casa. Todo mundo quer a Casa. Ser Palluka é ruim por que é mais dificil conhecer a casa e alcança-la se vivemos nos lamuriando sem nada procurar, enquanto sóbrios, por que a dor de estar sóbrio nos nubla a consciencia, ou por que vivemos em uma casa falsa, se bêbados, e nossa felicidade se esgota facilmente.
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Nos concentremos principalmente no conceito de Rain Dog, agora.
"Ah, como dançamos e engolimos a noite!"
O ato de dançar é muito importante. Nietzsche não acreditaria em um Deus que não fosse dançarino.
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Analisemos um fragmentos de fragmento de Pascal (133, de seus "Pensamentos"), traduzido pelo controverso Pietro Nasseti:
"O Homem é visivelmente feito para pensar. (...)Ora, a ordem do pensamento é começar por si, pelo seu autor e seu fim [sua finalidade]. Pois bem:em que pensa o mundo? Nunca em tais coisas, mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em viajar, em tornar-se rei sem cogitar do que significa ser rei e do que significa ser homem."
De uma sagacidade incrível. Pascal era um filósofo das coisas mais medíocres, das questões superficiais e da artificialide. A imaginação, com papel fundamental na condição humana, é o instrumento essencial do homem decifrar o mundo. Seja pela grandeza ou pela pequenez, pela distancia ou proximidade, a percepção humana somente pode lhe dar com o "entre" que se aparece por entre esses extremos, o tudo e o nada. Esse entre é o ser. É aquilo que é. E o ser é miserável, é corrupto e caduco, incapaz de lhe dar com a verdade das coisas, sempre em movimento, em errância, passando de ente à ente, sem se deter, nem querer se deter, em um repouso. Dos tópicos sobre o "divertimento" dos Pensamentos de Pascal foi que tirei este fragmento. Ele serve para dar uma visão interessante, não obstante externa, do que seria o tédio e o cotidiano da condição humana. Sem as distrações, sem a errância que obstrui a análise existencial e a reflexão do sujeito sobre si, a condição humana é jogada na percepção de toda a total falta de sentido de sua existência. O divertimento, a dança, aquilo que nos faz não pensar no infinito fechar-se do mundo enquanto abismo e no absurdo da imaginação que cria nossos heróis, nossos dogmas, nossas cismas, hábitos, costumes, toda a segurança abstrata que nos faz agir, e não chorar. Persistir e não findar. Talvez possa, e seja, um elogio a alienação. Prefiro pensar como a perspicaz noção de que o senso comum não é um instancia separada, inferior, superada, da filosofia e da reflexão racional, mas, sim, que o lidar do ser com o mundo é sempre através desta instância que sempre se relaciona. Nenhuma elocubração abstrata da razão persiste durante mais que um limite de tempo. O limite que o corpo, a vida, a existencia deste pensador suporta. A diversão está sempre balanceia esta reflexão que, como dizia Deleuze, entristece. Mas não apenas balanceia. Não há um momento em que um homem é outro, em que apaga o que foi divertido e adentra na metafísica: a metafísica brota da diversão, e a diversão não é um fazer irracional pura e simplesmente, pelo contrário, por vezes carrega coisas deste outro modo do homem lidar com o mundo. De fato, a dicotomia é totalmente obtusa: estão univocadamente juntas, o pensamento que entristece (o sóbrio que quer a Casa por que não a tem) e o divertimento que enobrece (o ébrio que se sente em casa quando se esquece que não tem a Casa). Mas aqui já abandono Pascal.
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"Tudo era muito maduro para ser um sonho"
Essa é a condição do Rain Dog: o contato direto com o real. Com "maturidade" Waits quer dizer que o real já aconteceu , que qualquer compreensão do entendimento reflexivo é tardia.O real é maduro, com isso não quer dizer que seja velho, mas que está, sempre, no estado perfeito para ser o que é, que ele sempre é o que é, e já está sendo, e qualquer caminho que a linguagem seguir será relacionado a está imediata realidade. Mesmo o mais teórico, imparcial, o mais imaginário, "sonhador" devaneio que possa ser feito na linguagem, é, por ser "é", claro, real, e tocado pela realidade, e relacional.
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Então... no fim da música, uma pessoa (uma moçinha fogosa e bêbada em uma acepção otimista, um mouro bronzeado em uma acepção pessimista) sussura no meio da dança (que já abordamos conceitualmente aqui) que
"Você nunca vai voltar pra (C)casa."
Em vez de eu dar estar respostas malfeitas e imediatas, vamos analisar as possibilidades:
1) Ela é uma vadia que quer tornar os homens em Pallukas de merda.
2) Ela é santa, como todas as mulheres que te levam pra Casa, e a negativa é simplesmente a afirmação de quê, na dança dos corpos e do mundo, você já está em casa. O Rain Dog está em Casa.
Claro que nós ficamos com a dois.
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Por fim: podemos notar que aqui há, nesta canção, o conceito central do Rain Dog, o Cachorro da Chuva, o personagem que Tom Waits quer descrever ao longo de toda a sua obra e que dá o tom, o fio condutor e a estrutura toda deste albúm de 85. Em "Singapore", a tradução anterior, temos um grupo de Rain Dogs em um barco viajando para Cingapura. A capacidade / desejo / destino de buscar a Casa é o que faz o barco ser a Casa naquele momento. Esta capacidade é onde reside a autenticidade do Rain Dog, de tornar o mundo um instrumento para se alcançar a casa. É neste sentido que "Come on up to the House", de 99, expressa uma espécie de transcendência do mundo.